domingo, 29 de abril de 2018

O BLUES DE NOVA BABEL: TRÊS CARTAS (PARTE 1)

Salto do ônibus quando chego no centro da cidade. A noite já avançou algumas horas, deitando seu manto escuro e frio sobre Nova Babel. Embora hoje em dia ninguém mais perca tempo olhando pras poucas estrelas que resistem entre as nuvens escuras, eu dou uma boa olhada e deixo escapar um sorriso de satisfação, como se estivesse espiando algo secreto e especial. O céu noturno é uma bela pintura, oculta das pessoas comuns, ocupadas demais, apressadas demais para olhar.

Deixo a umidade entrar nos meus pulmões e sigo adiante. As ruas do Centro se insinuam, flertando e oferecendo prazer, usando música, sexo e álcool para chamar atenção. As ruas não se importam com sua classe social, com a cor da sua pele ou sua maldita religião. A cidade é uma pregadora profana tentando levar qualquer um à perdição.

Os becos são tomados pelo assobio distante de músicas, vindas dos bares espalhados pelo bairro, ecoando como o canto de sereias, sibilando abafado entre as ruas desertas, seduzindo os desesperados. Uma brisa gelada toca a minha pele, eriçando pelos e desejos. Puxo um cantil do bolso e entorno um bom gole de cachaça que pode até espantar o frio, mas mantém os pelos e desejos eriçados.


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Quando chego ao Última Chance, o bar está cheio de gente. Pessoas buscando prazer no fundo de um copo de cerveja ou na companhia de alguém especial. As pessoas sempre esperam encontrar alguém especial, quando provavelmente vão se entregar para a companhia mais banal. Mas a esperança, como dizem, é a última que morre.
Mas essa tênue esperança é o que faz florescer a vida noturna da cidade. Talvez afinal as pessoas encontrem o que buscam. Talvez precisem de mais do que um copo, talvez precisem de mais de uma companhia. A esperança é uma maldita lazarenta que não se fode antes de te fuder. Esta vai ser uma longa noite…

A banda no palco toca um blues chorado, bem adequado para embalar o estado de espírito do público. Eu vejo alguns rostos conhecidos e os cumprimento com uma simpatia conveniente, porque em algum momento da noite o bar vai fechar, mas a madrugada seguirá adiante e nunca se sabe quem serão os camaradas que vão continuar a longa jornada até o amanhecer. Quando chego ao balcão oferecendo um sorriso pros atendentes, peço três doses de pinga. Não sou exatamente um fã de cerveja, então preciso amaciar o paladar para fazer descer o resto do molha goela que virá depois. Faço uma fila com os copos e entorno as doses uma depois da outra. A cachaça barata desce queimando a garganta e o cérebro, mas eu fico firme. O calor chega ao estômago, se espalha pelo resto do corpo e me traz um breve bem estar. E eu sorrio, como se tivesse feito algo secreto e especial.

Essa vai ser uma longa noite.

O casal detrás do balcão são os donos do lugar, acham graça da pequena cerimônia que eu fiz para beber. Ele é um espanhol com sotaque carregado e que geralmente fala rápido demais para que eu entenda alguma coisa com todo o barulho em volta. Ela, sócia e namorada, uma morena linda com um sorriso largo e cheio de vida. Não duvido que seja o responsável por cativar muitos dos frequentadores mais assíduos do Última Chance. Eu peço mais uma dose, mas deixo o copo e o meu estômago descansarem por alguns minutos.

Estou cercado por uma confusão de som e rostos. O ambiente toma conta dos meus sentidos. Está quente. O calor das pessoas se amontoando e o barulho fazendo o ar reverberar. Vibrar. Ouço gargalhadas. E conversas fúteis, embora a penumbra torne tudo mais misterioso, mais interessante. O bar está cheio de gente com histórias pra contar, e mulheres bonitas demais para não arriscar um flerte. Foi o que resolvi.

Vim ao Última Chance em busca do prazer volúvel proporcionado pelo álcool: afogar frustrações e fantasmas. Arrancar do cérebro as lembranças de um relacionamento que terminou há tempo demais para dizer que existiu mas que ainda me roubava algumas noites de sono, me fazendo se revirar na cama e encarar por horas as rachaduras no teto do quitinete barato que eu chamo de lar. Doce lar. Então vim para isso, esquecer.


Foi o que eu resolvi.

Jogar algumas virtudes para debaixo do tapete numa noite perdida. Encher a cara e mentir o suficiente, ou ser enganado o suficiente, até levar alguém para fuder num motel fuleiro qualquer. Deve resolver meu problema. Ao menos por essa noite não vou encarar nenhum teto riscado.

Mas first things first. Eu me concentro na primeira parte do plano: beber até não me importar em seguir os passos seguintes. Bebo a dose de cachaça que estava me esperando e encomendo a próxima. Sinto um prazer doce ao amaciar uma parcela de bom senso.

Essa vai ser uma longa noite.


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Obs: você pode ler a segunda parte deste conto através deste link.

MWXS

quinta-feira, 12 de abril de 2018

OS DIÁRIOS DE ÓCULOS: ESQUINAS

Meu espírito anda tão à flor da pele que eu crio um romance diante de qualquer brisa de beleza. Acho que a solidão tem sido minha companhia por tempo demais.

GWT

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